Reflexão sobre as causas e consequências das crises institucionais e societárias em curso e nos induza a pensar sobre o papel do arquiteto e do urbanista em tempos sombrios, gostaríamos também de refletir sobre os cimbramentos que, ao impedirem o desmoronamento do céu, permitem ensejar novas práticas arquitetônicas e urbanísticas, pós-desmanche.
Participantes: Raquel Rolnik, Evaniza Rodrigues, Maria Elisa Baptista
Mediação: João Marcos de Almeida Lopes
Dia 9.11 das 16h30 -18h30
Há exatos sete anos, no dia 5, rompeu-se a barragem do Fundão. Perdemos um rio, de doce nome, perdemos gente, perdemos uma cidade. A poesia de Elizabeth Bishop avisa que não é difícil aprender a arte de perder, perde-se um pouco cada dia, perde-se tudo e tudo pode parecer ser pouca coisa, ainda que o corpo repudie.
Em janeiro de 2019, o rompimento da barragem do córrego do Feijão matou 270 pessoas em Brumadinho, e destruiu o modo de vida de milhares ao longo do Rio Paraopeba. Estamos em novembro, e o calendário anunciando o verão é assustador para as muitas famílias que vivem nas encostas da região serrana do Rio de Janeiro, às margens dos córregos em Minas Gerais, à jusante das barragens, em tantos lugares mapeados como áreas de risco e que, ainda assim, são os únicos lugares onde os pobres conseguem, mal e precariamente, morar.
O desmonte dos frágeis freios à depredação de nossos ecossistemas, as mudanças climáticas, o estrago ambiental em escala planetária e o aumento brutal da desigualdade e da violência para gerar a concentração sem precedentes de riquezas, conhecimento e poder representam desafios tremendos. São urgências conhecidas, tarefas incompletas ou relegadas, e nos parece impossível eleger uma entre tantas que nos afligem.
É uma equação nefasta, essa que reúne a sanha do capital e a incúria do Estado. Mas, por outro lado, não é pouco o esforço dos que lutam pelo que a ciência pode nos antecipar e pelo que a generosidade pode proporcionar, a luta dos que vivem o desespero daqueles mais duramente afetados pelo aumento do nível do mar, pela extinção de ecossistemas, pela exaustão da terra e da água, pela poluição do ar, pela destruição de modos de vida.
Nasci e cresci em Belo Horizonte, no coração do que chamamos de quadrilátero ferrífero. O perímetro do quadrilátero – para lhe fazer jus, o quadrilátero aquífero – cerca as serras da Piedade, do Caraça, do Gandarela, de Ouro Branco, da Moeda, do Rola Moça, encosta em Belo Horizonte na face da Serra do Curral, e guarda preciosidades: cidades, igrejas, sítios arqueológicos, grutas, parques naturais, vida silvestre, casas, gentes. E água.
Guarda ainda seu maior pecado: minério. Desde a descoberta do ouro no final do século XVII, nossa riqueza é para inglês ver, é para rechear os cofres do quinto, é o minério de ferro sendo arrancado e expatriado, deixando seu rastro de crateras, águas exauridas, solo contaminado, rios mortos, famílias destroçadas.
O cerrado, aqui, antes de tudo, é uma mina de água, é uma fazenda de água. E não haverá bem mais precioso que a água, nos anos que virão.
A água é produzida nesses territórios que estão no centro da disputa entre mineração, agronegócio, extrativismo, pecuária. Resíduos químicos impactam profundamente os rios e o lençol freático. Só cuidaremos desse bem finito e infinitamente precioso se articularmos ações em diversos campos e níveis, com a certeza de que o território e tudo que nele está é um bem comum, e não um privilégio a ser explorado por alguns.
Ainda estamos a construir a ideia da função social da propriedade, a ideia do direito coletivo, falta muito para afastar o que nos corrói desde as capitanias hereditárias: a contra ideia de que a propriedade privada é um direito absoluto. A desigualdade que emerge dessa prevalência da propriedade privada sobre os direitos coletivos é o maior entrave ao sonho de um país justo e generoso.
O tempo no mundo é um tempo desigual, variado e disperso. Há muitos tempos ao mesmo tempo. O tempo dos ricos, que para eles é largo, mas aperta o tempo dos trabalhadores; o tempo na mata, o tempo no rio, o tempo de quem planta, o tempo de quem sofre a inclemência da catástrofe. Há lugares no mundo em que o tempo é o dos carros e dos aviões, e há lugares do mundo em que se anda longas distâncias a pé para buscar água para beber.
Há lugares e tempos em que o mundo parece pequeno porque é todo ele visto na tela do computador, e há lugares e tempos em que o mundo é só aquele mesmo.
Estamos aprendendo, a duras penas, que o mundo, de verdade, é um só, e bem pequeno, e está exaurido. A globalização, ou mundialização, que alcança, em todos os cantos, as mesmas exigências produtivas, a uniformização dos desejos, a transformação de todas as pessoas em consumidores, de todas as coisas em mercadoria, preconiza um mundo plano, pobre na sua esterilidade.
Mas o território, a base em que tudo existe, é a natureza. Rica, variada, indomável, ainda bem. A natureza tudo pode nos dar, água, ar, alimento, inspiração, espiritualidade, mas não é um supermercado onde tiramos da prateleira o que queremos, e jogamos fora a embalagem. Não é separada de nós, somos apenas uma pequenina parte desse todo do cosmos.
É urgente recuperar, ou melhor, construir nosso poder de decisão sobre o território. Não para dele fazermos o que quisermos, mas para impedir que seja campo livre para a exploração do capital em suas múltiplas formas, arrasando o que estiver no caminho. No nosso oficio da arquitetura e do urbanismo, há muito, muitíssimo, a aprender com os que se recusaram a ser uma peça inerte nesse processo de destruição.
Se não tomarmos a pulso as reformas urgentes – agrária, urbana, tributária –, se não recuperarmos direitos e investimentos no que importa – saúde, educação, moradia, trabalho –, se não nos erguermos contra toda exploração, toda ação será inócua. É uma esperança renovada que nos traz aqui hoje, tem um monte de gente pensando, pensando furiosamente, pensando poeticamente o que fazer para recuperamos nosso território, nosso país.
Vejam, as duas preciosidades que temos na vida são as águas e as crianças. São a vida e a possibilidade de continuidade da vida, ao mesmo tempo. Se cuidarmos bem delas, tudo dará certo. Ambas, a água e a infância, exigem de nós compreensão e cuidado. Cuidado e compreensão que são o cerne do nosso ofício, desenhado na imaginação de uma vida melhor, mais justa e mais feliz. Um ofício que exige um olhar múltiplo, um olhar ao redor, um olhar para dentro, um olhar também estrangeiro para o que pensamos conhecer, um olhar para o outro, sempre.
Penso, bebendo nas palavras de nossos gigantes, que a educação é o centro de tudo, é a mola que impulsionará tudo o mais. Educar para a vida em comum, educar para a beleza, para a alegria. Educar para descobrirmos a simplicidade, a generosidade, a coragem. Entre nós e nossas ações a memória se interpõe, e é preciso também educar para não repetir, criar centros de memória do que queremos esquecer, da escravidão, da ditadura, do holocausto ameríndio, dar voz ao que foi calado, ler o que foi apagado.
Nossa luta é no imaginário das pessoas, na reconstituição do tecido que alinhava nossas vidas a todas as vidas na Terra, para nos recolarmos a esse organismo Terra, como diz Ailton Krenak.
Para inscrever a arquitetura como valor cultural, como bem coletivo, “que realiza a condição fundamental para que as pessoas se reúnam e se mantenham juntas, o que é a base de uma república, e para que elas reconheçam suas possibilidades, desenvolvam as suas potencialidades, construam sua identidade e alcancem sua liberdade, seja como indivíduos e cidadãos, seja como grupo social, cidade e pátria”, como diz Cacá Brandão relendo Alberti.
Nossa única coerência é com a vida. E a vida não sobrevive ao descuido ou à negligência. O arquiteto Juhani Pallasmaa nos diz, tão verdadeiramente, que a arquitetura é mais verbo que substantivo: “o ato de se aproximar de uma casa, e não sua mera fachada, o ato de entrar, não a porta, o ato de olhar pela janela, não a janela em si, o ato de se reunir junto à mesa.”
Se somos uma gente que quer mudar o mundo, é para termos um mundo para nossas crianças e para as que virão. É para nos colocarmos a serviço, para resgatar o sentido de nosso ofício de edificar as condições para a cidadania.
O que tem segurado o céu são milhares de pequenas coisas feitas por milhares de pessoas − para morar de algum modo, para ter o que comer, para cuidar dos filhos, cuidar dos velhos, para alimentar o corpo e a alma, para cantar. Cantar nesse mundo que perdeu hoje a voz mais linda. O que ainda resiste são o que lá estão, à beira da cidade, à beira do consumo, à beira.
O cimbramento que impede tudo de ruir é o MST, o MTST, as brigadas populares, cada comunidade, cada ação cultural em cada favela, cada periferia, cada ocupação, cada acampamento, cada aldeia, cada quilombo.
Para resistirmos a esses tempos, para construirmos um mundo em que todos possamos viver, nesse pequeno planeta, precisamos continuar esse diálogo necessário, essa conversa múltipla e multiplicadora.
Maria Elisa Baptista, presidente do IAB-BR