O Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro, que reúne atualmente 26 entidades da sociedade civil e está presente nas unidades da federação por meio dos seus Fóruns Estaduais vem, por meio desta, se juntar ao movimento em defesa da preservação da encosta histórica de Salvador, Bahia.
A cidade de Salvador foi fundada como capital do Brasil, em 1549, segundo o tradicional modelo português de ocupação urbana, resultando, porém, numa paisagem peculiar, graças à sua gente e à sua encosta – uma falha geológica que a dividia em dois níveis: a Cidade Alta e a Cidade Baixa. A esta encosta, estiveram historicamente associados os usos do solo e as funções urbanas, os fluxos e as dinâmicas sociais, as praças e os mirantes, bem como as ladeiras e construções que se consolidaram como marcos referenciais da cidade, a exemplo do Elevador Lacerda.
Foi esta encosta, com sua cobertura vegetal que, ao longo dos séculos, cristalizou a imagem da cidade vista a partir do mar da Baía de Todos os Santos e se consolidou como um espaço predominantemente livre e verde, fundamental na composição da paisagem histórica de Salvador. Assim, esta paisagem se definiu por uma sucessão de vistas, vegetação, águas, e, principalmente, pela presença de pessoas que deram sentido ao sítio natural, sobre o qual a cidade cresceu e se expandiu, sendo estas as verdadeiras detentoras do patrimônio que construíram.
Estes atributos, vinculados à encosta, e ela própria, foram reconhecidos e valorizados no tombamento do Centro Histórico de Salvador pelo IPHAN, em 1984, inscrito no ano seguinte na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Em razão de sua importância, a encosta foi objeto de proteção e valorização na legislação urbanística de Salvador, ao menos desde 1948, que a integrava ao sistema de áreas verdes da cidade e proibia construções sobre ela. Seu valor histórico, paisagístico, imagético e ambiental também está patente nas leis municipais subsequentes, que fixaram medidas como a proibição de alteração de seu perfil topográfico, a proibição de destruição de seu revestimento florístico, a preservação de sua beleza e da paisagem da qual faz parte.
Contudo, como reflexo da insuficiência de políticas públicas voltadas à promoção de habitação social, fundamentais para acomodar demandas históricas de moradia digna, alguns trechos específicos da encosta foram ocupados – como no Pilar, configurando a atual ZEIS do Pilar, e no Santo Antônio, abaixo do mirante do Largo de Santo Antônio, além do Carmo, com a ocupação conhecida como Chácara Santo Antônio. Some-se, ainda, o avanço das construções formais da Rua Direita do Santo Antônio, que paulatinamente ampliaram sua área edificada, fenômeno intensificado nos últimos anos em razão da exploração turística e imobiliária, responsável pela criação de hotéis, pousadas, bares, restaurantes e outros equipamentos de lazer, provocando impactos sobre o bairro e a encosta.
Apesar dessas pressões, a encosta de Salvador se manteve como um espaço predominantemente livre, com trechos vegetados, sendo, portanto, fundamental desestimular sua ocupação e impedir novas construções, bem como desenvolver soluções especiais de contenção que levem em conta a vida, o patrimônio cultural e ambiental.
Porém, na contramão dessas necessidades, a CONDER, órgão do Governo do Estado da Bahia, realiza agora uma ação de imenso impacto, que violenta a paisagem do sítio tombado. Um trecho inteiro da encosta, entre o Largo do Santo Antônio Além do Carmo, na Cidade Alta, e a Rua Capistrano de Abreu, na Cidade Baixa, foi desmatado, teve seu perfil topográfico modificado e está recebendo obras de contenção, o que motivou o embargo pelo IPHAN, por meio da Superintendência da Bahia.
Considerando a inadequação e a gravidade dessas obras sobre a encosta, que estão comprometendo radicalmente seus significados culturais, paisagísticos e ambientais, torna-se urgente que essa violência contra o Centro Histórico de Salvador, patrimônio nacional e mundial, seja interrompida e revertida.
Brasil, 10 de outubro de 2023